A introdução das ações afirmativas no ensino superior foi um catalisador de mudanças sociais em diferentes esferas da vida nacional. Por conta do papel das universidades na formação das elites econômicas, políticas e culturais, a chegada de públicos até então minoritários criou condições para que reivindicações identitárias e demandas que extrapolaram os limites das universidades viessem à tona. Com isso, entender esse processo é de fundamental importância para avaliar transformações da sociedade brasileira. Implantadas em universidades públicas a partir de 2002, com as experiências inovadoras das estaduais do Rio de Janeiro e da Bahia, a ações afirmativas tornaram-se um modelo de política pública visando favorecer o acesso de estudantes oriundos declasses populares e negros ao ensino superior. Esse processo gerou, como se sabe, um intenso debate no seio da sociedade brasileira acerca dos efeitos dessas medidas para a redução das desigualdades entre brancos e negros, bem como sobre as sociabilidades hegemônicas no país (para muitos isso geraria um crescimento dos conflitos raciais, enquanto para outros isso ajudaria a desmascarar as múltiplas faces do racismo no país). Essa transformação das ações afirmativas como políticas públicas legítimas se consolida com a votação pelo STF da constitucionalidade das cotas para negros em 2012, bem como com a aprovação, ainda em 2012, da chamada lei das cotas que tornou obrigatórias as ações afirmativas para estudantes de escolas públicas, com cortes racial e de renda, em todas as instituições federais de ensino superior. Processo que se consolida com a adoção de cotas para alunos negros em várias pós-graduações a partir dos anos 2010, somada à lei que impõe a reserva de 20% das vagas para os concursos públicos na esfera federal em 2014.
Essa maior presença “negra” e de outros grupos vistos como minoritários nas universidades, trouxe consigo experiências sociais e subjetividades novas no ambiente universitário brasileiro, marcado até os anos 2000 pela predominância de jovens brancos de classe média. Contudo, sabe-se pouco ainda sobre aspectos importantes desse fenômeno relativamente novo na sociedade brasileira. Assim, uma discussão sobre os efeitos das reservas de vagas para as pós-graduações ou para os concursos de professores, a inserção dos egressos, os efeitos no sistemas de classificação racial entre estudantes, as discussões sobre a colonialidade do saber, etc. têm sido pouco estudadas e discutidas.- a expansão das ações afirmativas para outros grupos que não os negros de escolas públicas (trans, quilombolas, indígenas, pessoas com deficiência, etc.); a avaliação do desempenho de cotistas e não-cotistas; as ações afirmativas na pós-graduação e seus impactos nas pesquisas; as demandas por mudanças nos currículos (virada decolonial) os impactos na composição do alunado, os coletivos negros, o feminismo negro que se fortalece nesses espaços e fora deles; a situação dos egressos cotistas das universidades públicas no mercado de trabalho; as bancas de heteroidentificação e o jogo das classificações raciais; os efeitos no ensino médio;- a história da África como espaço para contextualizar o racismo no Brasil; o modo como o debate público se tornou mais aberto aos temas ligados às desigualdades raciais, etc
A questão que se coloca então é como avaliar esse processo sem torná-lo excessivamente parcelarizado e restrito. Nossa proposta parte da constatação de que a maioria das avaliações comparadas sobre ações afirmativas têm, por razões operacionais e de acesso às informações que as universidades disponibilizam, se restringido a dimensões da vida universitária ligadas à carreira discente (acesso, permanência, desempenho, etc.), sem conseguir dar atenção para outras dimensões dessas avaliações.
Deve-se levar em conta também os seus efeitos qualitativos, os quais ou não se prestam a uma mensuração de forma direta ou traduzem processos tão complexos e lentos que necessitam de um longo período para que seus efeitos possam ser mensurados em termos estatísticos
Cientes da multidimensionalidade das ações afirmativas e de seu impacto na sociedade brasileira, a equipe formada para esse projeto agrega diversos saberes disciplinares e diversas competências científicas e acadêmicas. Desse modo, a interdisciplinaridade é uma característica intrínseca da proposta aqui apresentada. Aglutinando pesquisadores de diferentes disciplinas das ciências humanas (sociologia, antropologia, ciência política, educação, filosofia, comunicação) o projeto dialoga com teorias e metodologias variadas, desde a etnografia antropológica à análise de discursos, corrente em disciplinas como a sociologia ou a educação, da análise de dados estatísticos (corrente na sociologia ou na ciência política) à análise documental, de uma metodologia claramente quantitativista ao uso de métodos qualitativos como entrevistas e grupos focais. É essa rede de instituições, sujeitos e estudos que conformam esse caleidoscópio das ações afirmativas.